O entrelace entre o Direito do Consumidor e os contratos de planos de saúde.

  1. O entrelace entre o Direito do Consumidor e os contratos de planos de saúde

     

    1. NOÇÕES SOBRE O DIREITO DO CONSUMIDOR

     

    Dentre o vasto campo de relações jurídicas, a consumerista ganha relevo especial no sentido de possibilitar a paridade e o equilíbrio processual, de modo a permitir que o elo mais fraco de tal avença – o consumidor – possua condições de perquirir eventual direito lesionado, tanto no âmbito extrajudicial, quanto no judicial.

    De início, é salutar compreender a ideia do princípio do favor debilis, que permite, em situações especiais, como a de consumo, mitigar regras processuais intrínsecas às demais relações jurídicas, no sentido de atender e fornecer as ferramentas necessárias para ambas as partes possam chegar ao resultado justo.

    Nessa senda, eventual previsão contratual restritiva de direitos do consumidor não logrará êxito se, em sua redação, restar lesionado direito do consumidor garantido pelo Código, ainda que de forma indireta.

    Deste vértice, importante destacar a doutrina:

     

    O favor debilis é (…) o reconhecimento (presunção de vulnerabilidade – art. 4º, I, do CDC) de que alguns são mais fortes ou detêm posição jurídica mais forte (Machtposition), detêm mais informações, são experts ou profissionais, (…), reconhecimento de que os “outros são mais leigos, não detêm informações sobre os produtos e serviços oferecidos no mercado, (…) são, pois, mais vulneráveis e vítimas fáceis de abusos (…)[1]. (sem grifos no original)

     

    Tal particularidade deriva da vulnerabilidade inata a todo e qualquer consumidor, ditada pela Constituição da República – art. 170, inciso V, agregada à hipossuficiência técnica, econômica e jurídica dos consumidores em relação aos fornecedores, em especial porque esses detêm os meios de produção, a cientificidade e o poderio econômico maiores do que aqueles.

    Dessa forma, a legislação consumerista, que, ao equalizar as discrepâncias apontadas entre os sujeitos da relação de consumo, positivou uma série de dispositivos de modo a pôr em prática seu anseio, servindo à coletividade de consumidores, mas, mormente, àqueles cuja vulnerabilidade seja aferida em maior grau.

    Novamente, suscitam-se as palavras da doutrina:

     

    O consumidor é, reconhecidamente, um ser vulnerável no mercado de consumo (art. 4º, I). Só que, entre todos os que são vulneráveis, há outros cuja vulnerabilidade é superior à média. São os consumidores […] de idade avançada, de saúde frágil. […]. A vulnerabilidade do consumidor justifica a existência do Código. A hipossuficiência, por seu turno, legitima alguns tratamentos diferenciadores no interior do próprio Código, como, por exemplo, a previsão de inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII).[2] (destaquei)

     

    Sem embargo, cumpre esclarecer que todas as hipóteses descritas acima alinham-se à Política Nacional das Relações de Consumo, em que é enaltecida a importância da pessoa humana consumidora no ordenamento pátrio nacional, exegese do artigo 5º, inciso XXXII, da CRFB, e art. 4º, caput, do CDC.

     

    1. INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE

     

    A relação de consumo aplicada a operadoras de saúde, para além da ontologia do contrato, é concretizada na jurisprudência pelo teor da Súmula 469 do Superior Tribunal de Justiça.

    Por se tratar de matéria regulada pela ANS (Agência Nacional de Saúde Complementar) a observância ao rol de procedimentos aprovados, bem como à Lei no 9.656/98 é fator importante, porém configura mero exemplo, não constituindo taxatividade dos procedimentos permitidos, sendo, apenas e tão somente, norte exemplificativo, tanto no âmbito da diagnose, quanto da terapia.

    A Lei nº 9.656/98 é o diploma que rege as relações inerentes à saúde suplementar, tendo sido editada em obediência ao artigo 197 da Constituição da República de 1988.

    Dentre os dispositivos normativos que compõem a Lei nº  9.656/98, destaca-se o artigo 10, caput, cuja redação tipifica que as coberturas devidas, em sentido amplo, se prestam a tratar todas as doenças que se encontram listadas no CID 10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde):

     

    Art. 10.  É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei,: […] (destaquei)

     

    Ainda, o artigo 12 estabelece o alcance do fornecimento de coberturas aos beneficiários de planos de saúde, seja em ambiente hospitalar ou fora dele:

     

    Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)

    I – quando incluir atendimento ambulatorial: (…)

    1. b) cobertura de serviços de apoio diagnóstico, tratamentos e demais procedimentos ambulatoriais, solicitados pelo médico assistente; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001) (…)

    II – quando incluir internação hospitalar: (…)

    1. d) cobertura de exames complementares indispensáveis para o controle da evolução da doença e elucidação diagnóstica, fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões e sessões de quimioterapia e radioterapia, conforme prescrição do médico assistente, realizados ou ministrados durante o período de internação hospitalar; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001) (destaquei)

     

    A Lei nº 9.656/98, interpretada sob a ótica do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, tendo por base os artigos 10, caput e 12, incisos I, alínea “b” e II, alínea “d”, bem como pela ontologia da lei consumerista, que amparam eventuais direitos ignorados pela leitura literal de cláusulas contratuais elaboradas por operadoras de saúde.

    Atualmente, o rol de procedimentos e eventos em saúde vigente é aquele estipulado pela Resolução Normativa nº 428/2017, expedida pela ANS, autorizada pela Lei nº 9.961/2000.

    De modo particular, a RN 428/2017 em seu artigo 17 traz o comando normativo que determina a obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos para a execução dos procedimentos:

     

    Art. 17. Taxas, materiais, contrastes, medicamentos, entre outros, necessários para a execução de procedimentos e eventos em saúde de cobertura obrigatória, contemplados nesta RN e em seus Anexos, possuem cobertura obrigatória, desde que estejam regularizados e registrados e suas indicações constem da bula/manual perante a ANVISA e respeitados os critérios de credenciamento, referenciamento, reembolso ou qualquer outro tipo de relação entre a operadora e prestadores de serviços de saúde.

     

    Um exemplo clássico de restrição ilegal de direitos de consumidores de planos de saúde é a restrição para fornecimento de medicamentos administrados em via oral, cujas cláusulas são constantes nesse sentido.

    Em contrapartida e seguindo a essência da Política Nacional das Relações de Consumo, o Superior Tribunal de Justiça já sedimentou o entendimento relativo à nulidade de cláusula em contratos de planos de saúde que dispõe sobre a vedação de fornecimento de tratamento com medicamentos administrados pela via oral:

     

    AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. COBERTURA. NEGATIVA. ALEGAÇÃO DE MEDICAMENTO DE USO DOMICILIAR. DANO MORAL CONFIGURADO.

    1. Revela-se abusiva a recusa de custeio do medicamento prescrito pelo médico responsável pelo tratamento do beneficiário, ainda que ministrado em ambiente domiciliar. Precedentes do STJ.
    2. Agravo interno a que se nega provimento.

    (AgInt no AREsp 1064435/GO, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 14/11/2017, DJe 23/11/2017)

    AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OBRIGAÇÃO DE FAZER.PLANO DE SAÚDE. MEDICAMENTOS DE USO DOMICILIAR. INDEVIDA RECUSA DE COBERTURA. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. PEDIDO GENÉRICO. ART. 286, II, DO CPC/73. FUNDAMENTAÇÃO AUTÔNOMA NÃO ATACADA. SÚMULA 283/STF. VIOLAÇÃO AO ART. 333, I, DO CPC/73. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. RECURSO NÃO PROVIDO.

     

    1. A Corte de origem dirimiu a matéria submetida à sua apreciação, manifestando-se expressamente acerca dos temas necessários à integral solução da lide. Dessa forma, não havendo omissão, contradição ou obscuridade no aresto recorrido, não se verifica a ofensa ao artigo 535, II, do CPC. 2. “Ainda que admitida a possibilidade de o contrato de plano de saúde conter cláusulas limitativas dos direitos do consumidor (desde que escritas com destaque, permitindo imediata e fácil compreensão, nos termos do § 4º do artigo 54 do Código Consumerista), revela-se abusivo o preceito excludente do custeio do medicamento prescrito pelo médico responsável pelo tratamento do beneficiário, ainda que ministrado em ambiente domiciliar” (AgRg no AREsp 624.402/RJ, Relator o Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 19/3/2015, DJe de 26/3/2015).

     

    1. Na hipótese, o Tribunal de origem concluiu pela licitude da apresentação de pedido genérico, entendendo tratar-se da hipótese prevista no inciso II do art. 286 do CPC/73. Tal fundamento, autônomo e suficiente à manutenção do v. acórdão recorrido, não foi impugnado nas razões do recurso especial, convocando, na hipótese, a incidência da Súmula 283/STF.

     

    1. No que diz respeito ao artigo 333, I, do Código de Processo Civil, acrescente-se que os argumentos utilizados para fundamentar a pretensa violação somente poderiam ter sua procedência verificada mediante o reexame das provas, o que encontra obstáculo na Súmula 7/STJ.
    2. Agravo interno a que se nega provimento.

    (AgInt no AREsp 989.137/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 08/09/2017)

     

    Pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos casos em análise, à luz da melhor interpretação, orientada pelo artigo 47, no sentido de endosso à ontologia constitucional, sendo importante ferramenta da deontologia daí advinda, é cristalino o direito dos consumidores em obterem tal tipo de medicação, a despeito de eventual disposição contratual em sentido contrário.

     

     

    • CONCLUSÃO

     

    Da breve análise relatada, tem-se que os contratos avençados entre operadoras de saúde e consumidores subsumem-se às normas consumeristas e constitucionais, que evidenciam a vulnerabilidade dos contratantes, permitindo o (re)equilíbrio de forças, mesmo após a celebração do respectivo negócio jurídico.

    A obediência aos ditames da Constituição da República e do Código de Defesa do Consumidor é conditio sine qua non para validade do contrato redigido pelas operadoras de saúde, que deverão obediência àquelas normas, preservando a Política Nacional de Consumo e suas diretrizes.

    Assim, observa-se que o consumidor, muitas vezes ao se deparar com um contrato desatento às normas constitucionais e consumeristas, vivencia situação aflita, acreditando estar estanque ao caso que reclama o correto agir das operadoras de saúde, quando, em verdade, tem o direito garantido por lei maior, que elide a cláusula abusiva e inválida firmada.

     

    FERNANDO H. P. MOCELIN MORAES – OAB/PR 83.669

     

    [1] (BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 42/43)

    [2] BENJAMIN, Antônio Herman V. MARQUES, Claudia Lima. BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 304.

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